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Sunday, November 20, 2016

Sou um numero (a) mais

Sou um número, todos nós somos números. Somos um número para a Segurança Social, Registo Civil, Finanças, os números perseguem-nos toda a nossa vida. Começa quando nascemos e acaba quando morremos.
Na escola dão-nos um número e posteriormente no trabalho também nos dão um. Nas estatísticas, sabemos que fazemos parte daqueles números. Pertencemos à população estudante ou activa, casados ou solteiros. Podemos ser estudantes e solteiros e fazer parte simultaneamente destes dois números. Mas não é possível pertencer aos casados e aos solteiros, por uma questão de coerência. Ao longo da nossa vida escolhemos pertencer a determinados números, por exemplo, ao escolhermos uma profissão, iremos cair no número de pessoas que exercem essa mesma profissão, pertencemos depois a um dos sectores de actividade.
Existe um número ao qual não escolhi pertencer, eu faço parte do número de pessoas que estão infectadas com o HIV.
É terrível, ver no reflectido papel, a destruição dos nossos sonhos. POSITIVO. Parece que não se vê mais nada. Porque diabos uma palavra tão bonita se torna um pesadelo?
A pergunta sem resposta aparece na nossa mente, PORQUÊ. Que fiz eu para merecer isto?
Angústia, raiva, vontade de me suicidar, tudo isso eu passei.
Naquele dia maldito, novembro, foi o dia mais infeliz da minha vida. Cheguei a casa completamente desesperado, corri para a cozinha, agarrei numa faca, coloquei-a nos pulsos e estava prestes a cortá-los quando...
Lembrei-me da minha mãe, do desgosto que lhe ia causar e vim sentar-me no sofá da sala e chorei lágrimas salgadas desesperadas e cheias de raiva.
Quando estava mais calmo, liguei ao meu namorado, sim namorado, eu sou homossexual com muito gosto e prazer, ao menos não sou como muitos que casam e depois ao fim de uns anos deixam as mulheres, que vão parar ao psiquiatra, a perguntar o que fizeram de errado e o que de mal se passa com elas. Eu dava em louco se fosse trocado por outra mulher, por isso eu percebo-as. Dei-lhe a noticia e a restea de esperança apagou-se ,Metade de mim era ele a a outra metade o amor por ele ...Ficamos condenados os dois.
Não disse a ninguém. Para quê? Se sei que a ignorância natural das pessoas as ia afastar de mim. Isso eu não suportaria, a solidão, o mais horrível de todos os males de quem sofre desta doença. Como diz Goethe: “ não há nada mais assustador que a ignorância em acção.”.
A minha mãe já sofreu por eu ser homossexual, pela morte do meu pai dois anos antes de eu descobrir que estava infectado. E quanto aos amigos, eles iam afastar-se naturalmente, hoje diziam que iam sair com os respectivos namorados, amanhã tinham um jantar, até que o afastamento se tornava natural.
Por me abraçarem não ficam infectados ou por me darem um beijo; não podemos é passar a ser irmãos de sangue.
A relaçao chegou ao fim depois de um sem numero de traições porque cada pessoa reage diferente , e no caso procurou sensações novas , matando aos poucos o amor existente .Ao contrario de mim não tem medo e arrisca , o lema dele depois resolve-se ...depois de condenar alguém ...isso não consigo , e por não conseguir e por pensar demais se calhar ajudei a matar uma relação... a ideia de puder ser o responsável pelo mal estar de alguém não me deixa sequer ter algum relacionamento .
A medicação torna-se um hábito, começa a entrar na nossa rotina assim com as análises.
A minha vida é tão normal e banal como a das outras pessoas. Até acho que é melhor.
Bebo as palavras dos amigos, gravo os sorrisos e os elogios, não sei se amanhã poderei estar com eles, aproveito cada momento. Se isto teve algo de bom foi que me fez aproveitar a vida, não faço loucuras. No entanto, não adio sonhos , o único que me adiaram foi o de viajar mas aceitei que nunca irei voar para o estrangeiro .
Amanhã é sábado e decidi subir ao castelo, em quase quarenta anos de vida nunca lá subi.
O castelo esteve sempre lá e eu nunca quis subir, adiava e tornava adiar, amanhã ele está lá, eu é que posso já não estar aqui.
Não me sinto perseguido pelo espectro da morte. Como diz a minha mãe, todos nós trazemos um livro só que não sabemos lê-lo, nem quantas páginas tem.

Por isso, temos de viver cada momento e aproveitar a vida.

Amanhã lá subirei ao castelo e verei a cidade lá do alto. Eu olho a vida do alto e tento ver que caminho tenho a ainda de percorrer.